Gil Pena
“Os oprimidos que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem as suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão dessa sombra, exigiria deles que “preenchessem” o vazio deixado pela expulsão com outro conteúdo” - o de sua autonomia.” (Paulo Freire - educador).
Entre os meus estudos atuais, um autor com quem estou aprendendo muito é Paulo Freire. A pergunta é: Como fazer para que nós 1400 pessoas discutamos a consciência que temos a cerca do mundo, refletindo sobre ela, de modo a termos a possibilidade de construir uma realidade diferente a partir dessa reflexão?
A grande delícia é a possibilidade de construir uma realidade diferente, acreditar nessa possibilidade, ver que nós mesmos ainda não estamos totalmente construídos, que ainda cabem reformas e aquisições
na nossa forma de pensar, isso enquanto vivermos.
Nem todos compartilhamos da confiança nessa possibilidade. Haverá os que pensarão consigo mesmos: é impossível!
Dirão que estamos perdendo o tempo, a história está escrita e o que o futuro nos reserva, o destino já traçou, pois aos nossos filhos, veio o cromossomo a mais e não podemos mais tirá-lo dali, bloquear seus efeitos, e isso é a lei da genética, da fisiologia, da neurologia, da ciência, etc.
Não perceberão os que dizem que é impossível que não são eles mesmos que assim dizem, mas as “sombras” introjetadas em seus seres que lhe depositaram esses conteúdos e que foram assimilados sem reflexão. A sociedade não quer conviver com o diferente, é melhor deixá-lo fora disso, aceitemos então essa “verdade” que nos transmitem, que aceitamos como “depósitos” sem refletir, e nada de querer “ad-mirar” o mundo. É melhor então mitificar a realidade, nos dão um “falso mundo” para que possamos “ad-mirar”. Não percebemos o mundo como “problema”, mas como algo estático, a que os homens devem se ajustar.
A mitificação do mundo tem a ver com a ciência, a medicina, a pedagogia tradicional, a sociologia, a psicologia: nos apresentam a realidade, como “comunicados”, não nos é dada a oportunidade de
diálogo, de querer entender o que se passa, são mitos necessários à manutenção do “status quo”.
Há muitos mitos em torno das pessoas com síndrome de Down, que são mitos “depositados”. Aliás, todos nós de algum modo já percebemos que a realidade que vivemos desmente esses mitos, mas ainda assim, permanece a falsa verdade. A desconstrução de um ou outro mito não nos muda a visão do mundo. Permanece o falso mundo como a realidade visível. A “sombra” dentro de nós nos turva a possibilidade de ver claramente o mundo.
Há o mito de que as pessoas com síndrome de Down são deficientes.
O mito de que não aprendem a pensar o abstrato (a educação tem de ser concreta, tratar com símbolos, não com signos).
O mito de que adaptações (reduções, simplificações) curriculares são necessárias.
O mito de que serem aceitas na escola já é bom, que essa “socialização” com outras crianças é uma oportunidade que nos dão.
O mito de que aprendem até determinada idade, depois “estacionam”, “regridem”.
O mito de que o cromossomo a mais os tornam pessoas iguais.
O mito de que a educação especial é necessária.
O mito de que a escola tem de ter uma preparação metodológica prévia para saber lidar com a síndrome.
O mito de que somos pessoas especiais, que temos filhos especiais.
O mito de que temos nos contentar com a Holanda (”a Holanda é linda”), quando queríamos estar em Roma.
O mito de que a ciência está trabalhando para conseguir anular o cromossomo extra, que essa é a esperança que resta.
O mito de que não podemos contradizer o que nos dizem que está escrito nos genes (saberão mesmo ler os genes?).
O mito de que o “assistencialismo” é um conquista, quando esse mesmo assistencialismo é uma forma de sermos conquistados.
Temos de problematizar cada um desses mitos. Dar-nos a possibilidade de refletir sobre elas: são mesmo verdades que construimos ao longo do nosso viver ou simplesmente as “sombras” dos “depósitos” que recebemos e armazenamos sem refletir?
O texto acima é uma “transliteração” de Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido (p. 157-160).
Gil Pena é médico patologista e pai. Dedica-se a estudos na área da educação, dentro da linha do Projeto Roma
Fone: Blog Disdeficiencia
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